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Contos para avós: Da Repulsa ao Orgulho

contos para avós

Foi numa noite quente de verão, sem brisas nem aragens, que pensei pela primeira vez no destino que tinha traçado para mim. Enquanto o meu esposo dormia num sono profundo, o som dos ponteiros do relógio levavam-me à loucura. Ali estava eu, deitada na ponta da cama, num quarto que parecia uma sauna. Sinta-me sem ar, sem forças, a implorar que o sono viesse ter comigo. Mas nada adianta, estava condenada àquela malvada insónia.

Tentei levantar-me mas o meu corpo parecia que se tinha fundido com aquele lençol. Parecia um combate de titãs e no último round eu erguera-me e vencera aquele temível adversário. Sim, hoje eu sei o quanto isto foi ridículo.

Cheguei à cozinha completamente exausta. Bebi meio litro de água num ápice. Dirigi-me até à casa de banho para lavar a cara, mas fiquei presa ao reflexo no espelho. Quem era aquela mulher encharcada em suor? Era difícil acreditar que aquele reflexo era meu. A minha expressão facial quase que desaparecera com a quantidade de gordura que a rodeava. Quanto mais olhava menos me identificava com aquela pessoa que ali via, sentia tamanha repulsa por aquele ser. As lágrimas perdiam-se na minha velha camisa de dormir. Queria-me sentar no chão e não estava a ser capaz. Furiosa comigo, deambulava pelas assoalhadas daquela casa sem parar. Sei que já passava das 4h quando o cansaço finalmente começou a vencer-me. Sentei-me no sofá da sala, ajeitei a almofada e cai num sono profundo.

“Formosa estás doente?” Perguntou-me Augusto enquanto acariciava o meu braço. Mal conseguia abrir os olhos quanto mais falar. Apenas abanei a cabeça como forma de negação. “Vem para a cama. Hoje precisas de repouso.” Aquelas palavras doces do meu esposo atingiram-me como balas. Eu sabia perfeitamente que tudo aquilo que eu não precisava era repouso. Precisava de viver. Foi então que olhei-o nos olhos e disse vem comigo. Lembrei-me que tinha uma balança guardada na casa de banho. Retirei tudo o que estava em cima dela, limpei o pó que tinha camuflado a sua cor original e suspirei. Enquanto subia para aquele frágil aparelho, Augusto olhava-me com estranheza. O ponteiro da pobre balança parecia que acusava a dor, até se fixar nos 144 kg. “Vês Augusto? Percebes agora porque é que eu não posso repousar?” O meu marido não conseguia perceber a minha dor, riu-se sem saber o quanto me estava a ferir naquele momento. Sinta-me fraca e cheia de tonturas e antes de desmaiar ouvi-o dizer: “meu amor, gordura é formosura… nenhum homem gosta…”, não consegui perceber o resto pois já tinha perdido os sentidos.

Passei o dia na cama mesmo contra a minha vontade. O meu marido aqueceu a sopa e o jantar de ontem e levou-me à cama. Não me deixava levantar por estar demasiado fraca. Percebi que não havia espaço para o diálogo naquele dia, já são mais 40 anos de casados, conheço aquele olhar de quem não permite ser contrariado. No entanto eu sabia que aquele era o último dia daquela vida sedentária, dos costumes tradicionais, dos pratos cheios de enchidos, dos bolos recheados, e da ausência da minha auto-estima e do meu conformismo.

Na manhã seguinte preparei o tradicional pequeno-almoço para o meu marido. No entanto para mim, servi um chá verde, três peças de fruta e uma torrada com queijo fresco. Não o podia obrigar a acompanhar-me naquela dieta, tinha que fazer aquela jornada, se ele me acompanhasse tudo bem, senão caminharia sozinha. Aos 60 anos não sabia bem por onde começar, mas sabia que tinha que começar. Augusto costumava ir para o jardim perto de casa até à hora de almoço, eu ficava em casa a tratar das lides domésticas. A única profissão que eu tive foi como cozinheira num restaurante de comida típica transmontana, nunca me preocupei com uma alimentação saudável pois gostava demasiado de comer tudo aquilo que fazia mal. Tinha que aprender tudo novamente.

Fui ter com uma vizinha minha, que era de uma elegância extrema. Ouvi dizer que ela fazia desporto desde sempre e que levava uma alimentação regrada e saudável há muitos anos. Poucas tinham sido as palavras que tínhamos trocado até à data, todavia Idália foi de uma simpatia e delicadeza incrível. Explicou-me que não ia ser fácil, era um processo, uma nova forma de viver, no entanto se eu estava determinada era o mais importante. No próprio dia Idália veio antes do jantar a minha casa cheia de receitas equilibradas e saudáveis, planos alimentares, planos de exercícios e alongamentos e recomendou-me a ida ao ginásio.

Foram tempos difíceis, odiava muitas daquelas refeições, as idas aos ginásios eram o meu maior pesadelo, mas continuei afincadamente. Um dia o meu marido decidiu fazer uma tentativa e juntou-se há minha jornada por uma vida mais saudável.

Passaram-se 5 anos desde aquela noite em que o meu mundo desabou. Nunca pensei que ficaria tão agradecida a uma insónia, hoje proclamo a toda a hora, “bendita insónia”. Agora olho para o meu corpo e já não choro, sorrio. Não, não me tornei numa modelo, porém já perdi mais de 50kg, ou seja saiu uma modelo de mim. Sinto-me bem comigo e finalmente tenho orgulho na pessoa que me tornei. Finalmente escolhi a estrada certa e o melhor de tudo é que não tive que percorre-la sempre sozinha. O meu Augusto não diz, mas eu bem vejo o seu olhar, a chama acendeu-se novamente. Ele sempre soube que gordura não é formosura, é desleixo. Apenas ama-me incondicionalmente e nunca iria dizer-me que eu estava gorda. Mais que a gordura, o que eu nunca me tinha apercebido é que aos 60 anos eu estava a morrer e não fazia nada. E era isso que me fazia sentir nojo e total repulsa de mim própria.
E meus caros acreditem, passar da repulsa ao orgulho é uma proeza.

Texto de: Natacha Figueiredo
Contos para avós: Da Repulsa ao Orgulho Contos para avós: Da Repulsa ao Orgulho Reviewed by Unknown on 06:50:00 Rating: 5

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